sábado, 30 de outubro de 2010

Capítulo 3 – Tensão

Eu estava parada, diante da escuridão da alameda em que minha casa se encontrava. Vi Thor desaparecendo no meio dos carros, no ponto em que a minha rua termina e se encontra com a avenida principal, que liga, um pouco mais a frente, à Avenida Paulista.
O desespero correu meu corpo como uma agulha hipodérmica, me deixando inerte a qualquer reação. Lembrei-me de todos os momentos que passei com ele. Eu o comprei numa loja de animais, ele era marrom, exceto por uma linha de pelos brancos que cortava seu peito. Tinha também, algo que me chamou a atenção: Uma espécie de adaga que saltava a pele na altura da coluna. Tive que perguntar ao vendedor se isso era normal, e ele me disse que era algo específico da espécie, e que cresceria junto com ele, como parte do osso do animal. Achei engraçado ter um bicho diferente dos outros e fiquei com ele. Desde então, observei o crescimento daquele corpo estranho em meu cachorrinho até me acostumar, e hoje, estranho os cachorros que antes considerava como normais.
Depois de alguns segundos sem saber o que fazer, consegui correr atrás do meu fiel companheiro que havia me deixado só. Entre os carros e a angústia, eu andava pela calçada às lágrimas, sem saber o destino de Thor e muito menos o meu.
Às vezes, esbarrava em uma pessoa ou outra, que me olhava com repulsa, como se eu estivesse drogada ou coisa parecida, e, em pouquíssimo tempo, acabavam por perceber que eu só estava desesperada. Houve quem tentasse me ajudar a achar o que eu havia perdido, mesmo não tendo noção do que estava acontecendo comigo. Outros, por sua vez, julgaram-me mal e eu vi um flash ou outro em minha direção. Nem passava pela minha cabeça que eu era uma pessoa pública, e que isso poderia causar algum transtorno nas pessoas que achavam que me conheciam.
Sentei-me na guia da calçada e fiquei observando as pessoas a me observar. Estranho pensar que eles me viam como um ET, alguém anormal, que não podia se sentir mal, sofrer ou algo parecido. Dos poucos que me conheciam como repórter, alguns aproveitaram para vir falar comigo, me consolar, mas eu não conseguia ao menos abrir a boca. Eu queria agradecer, dizer alguma coisa, mas nada. Em um ou dois dos casos, a pessoa compreendeu e foi embora. Os demais acharam um descaso da minha parte, mas o que eu poderia fazer?

Acabei retornando pra casa, e andei por todos os cantos, tentando encontrar vestígios do meu anjo da guarda, mas nada me fazia acreditar que ele pudesse ter voltado. Desabei, perdi o chão e encontrei um lance de escada, escada a qual apoiei para subir até meu quarto, sem saber o que fazer. Não sei dizer quanto tempo demorei pra dormir, o silêncio absoluto me perturbava, a ausência de Thor me deixava fraca, com medo de que algo de ruim pudesse ter acontecido com ele, e sem ele, eu jamais seria eu mesma.

§§§
Um barulho agudo me perturbou, eu estava despertando de um sonho esquisito. Era como se pudesse existir aquela sensação de déjà vú no meio de um sonho qualquer. Eu estava no meio de uma colina verde, iluminada por uma luz azul cintilante. Escalei-a sem nenhuma dificuldade e quando subi ao topo dela, vi o mar revoltado, com trovoadas e ao mesmo tempo uma paz interna. Era como se nada além de mim existisse. Eu poderia gritar, sorrir ou cantar, se quisesse, e ninguém se importaria. O barulho das ondas era tão alto que era impossível ouvir qualquer outra coisa. Deixei-me influenciar por esse som, sentir a brisa salgada em meus lábios e o vento dominar minha alma. Nesse tempo meio acordada, percebi que a janela do meu quarto estava aberta, e o vento do sonho era real. O barulho das ondas se tornou mais agudo e também era real. Temi por imaginar se o gosto estranho em minha boca pudesse ser simplesmente parte do sonho, e isso me fez abrir os olhos.
O fato era que Thor estava no meu colchão, em cima de mim, e o ar quente e mal cheiroso que ele dispersava revelava que realmente aquele gosto ruim em minha boca vinha de uma possível lambida dele. A janela escancarada e uma luz azulada vindo não se sabe de onde ocupava metade do meu quarto, mas logo ia se dispersando na imensidão da madrugada ainda escura. Thor esperava uma reação minha, como se jamais tivesse saído de casa naquele momento, como se tivesse passado a noite inteira comigo e só estivesse querendo brincar.
- Seu louco! Você me largou! – eu gritei, exaltada de alegria – nunca mais faça isso! – briguei, tentando parecer brava.
Ele assentiu, lambendo minha cara com a mesma felicidade de sempre.
- Ah – prossegui – e você está de castigo. Pode sair da minha cama.
Empurrei Thor para longe e ele desceu da cama, conformando-se com o seu tapete acolchoado.

Levantei, fechei a janela, fui até o banheiro lavar o rosto e voltei a dormir. Ou pelo menos tentei voltar. O dia amanheceu e eu estava pregada de sono. Talvez por não ter dormido à noite, ou por não ter tido tempo para descansar durante a semana. Minha irmã me ligou enquanto fazia uma salada de frutas para o café da manhã:
- Oi – disse ela num tom alegre.
- Oi – respondi, sem nenhum entusiasmo, o que não abalou o dela.
- Sabe o que está te esperando na tevê hoje?
- Não acredito Inês! – disse – você não tem nada pra fazer aí não?
- Hoje não. As provas só começam no mês que vem, ainda tenho tempo para te encher.

Minha irmã era mesmo inacreditável. Ela não estava blefando quando disse que iria conseguir uma reportagem para eu cobrir. Desde que ela descobriu que a TV Publish estava aberta a sugestões do público, ela não parou de intervir. Imaginei o que ela estava inventando, se isso ia fazer eu perder o emprego ou ser promovida.

- Não acredito. Como você fez isso?
- Contatos, queridinha. Contatos! – ela ria do outro lado da linha – Relaxa Carol, você vai gostar.
- Pelo menos pode me dizer o que é?
- Ah, não sei. Acho que preciso limpar a república.
- Ah vá... Você é um porre menina!
- Também te amo, Carol. Até mais tarde, na tevê.


Ela desligou depois de uma longa gargalhada. Lembrei-me do quanto era feliz na minha época de República, na universidade. Por um momento senti falta, mas me lembrei por que havia escolhido seguir esse caminho.
Era 1999 quando meus pais faleceram em um acidente de carro. Pode parecer comum, mas não foi. Imagine a situação: um carro a 40 km/h andando em linha reta, numa pista cheia de buracos, na BR-324, Salvador – Feira de Santana, - só não me lembro o que eu estava fazendo lá -. No carro estava eu, com 17 anos na época, minha irmã com 6, meu pai dirigindo e minha mãe, Amanda, ao seu lado. Diminuímos a 20 km/h por conta de uma ultrapassagem irregular de um carro na direção oposta, que teve tempo suficiente para ultrapassar sem causar danos. No momento em que o carro voltou a sua pista, um Dodge Caravan 90 do meu pai foi arremessado a mais ou menos 1 km dentro do canavial que estava plantado lá. No mesmo instante, o carro começou a pegar fogo, minha mãe quebrou o vidro do carro, retirou a mim, minha irmã e meu pai, que já estava morto. Ela terminou morrendo no hospital, depois de cinco dias em coma.

Não sei explicar como tudo isso aconteceu, nem da forma como aconteceu. Uma hora eu estava no carro, a 20 por hora, no minuto seguinte, fui arremessada, junto ao carro, em uma distância que não seria possível em tão pouco espaço de tempo.
Fora concluído que meu pai estava em alta velocidade e que, quando o outro carro ultrapassou, o Dodge Caravan 90 pulou um buraco e saiu rodopiando. O que também não foi exatamente explicado.

Tudo isso me fez querer fazer jornalismo. Por quê? Para tentar fazer mais justiça nos próximos casos estranhos que possa aparecer. Se bem que, já faz quase 10 anos, e nunca aconteceu nada parecido com isso.
São poucas lembranças que ocupam a minha mente sobre meus pais, na verdade, menos ainda de meu pai, ele era representante comercial de uma grande empresa, viajava de mês em mês, e sempre era Amanda quem cuidava de nós duas. Ela era uma mulher de garra, lembro-me de seus olhos feito os meus verdes e alegres. A ultima recordação que tenho dela foi do aniversário de 5 anos de minha irmã, Inês, ela tinha feito uma mega festa nesta casa, Inês mal alcançava o telefone, e eu não deixava ela falar com o papai, o que a deixou extremamente nervosa, e eu ria feito uma adolescente besta que só sabia encher a paciência da mãe.
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Leia aqui o próximo capítulo.


Todos os textos escritos sao de autoria de Gisela Santana. Por favor divulguem, mas com os necessarios meritos.

2 comentários:

  1. Gisa, amei essa parte do Thor, deu um ar de realidade à vida pública da Carol. A gente tem esse tipo de pensamento mesmo, como se os famosos não fossem normais. Engraçado que, mais cedo, eu tava pensando numa cena do meu personagem mais famoso. Ele dizia: "você se esquece que eu sou uma pessoa comum, de carne, osso e sentimentos?"; mas a gente meio que esquece mesmo.

    Nossa, são tantas informações... Ah, a descrição da BR 324 ficou muito boa. Naquela época, era bem assim, uma buraqueira só. Agora, anda bem melhor. O canavial também era enorme, não sei com está hoje - sempre durmo nesse trecho das viagens. (rsrsrs...)

    O sonho foi perfeito, eu pude até sentir a brisa salgada em meus lábios. Imaginei a Carol no topo de uma montanha gramadinha, olhando de cima o mar revolto, mesmo num pôr de sol nostálgico e triste pelas trovoadas.

    Parabéns!


    <><<

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  2. Ah isie, sempre fico mais motivada quando você comenta meus textos, que bom que está gostando... afinal, a essencia é sua.. como dizia meu professor de fotografia e historia da arte, Michelangelo pegava um bloco de marmore gigantesco, e, enquanto esculpia DAVI, gritava desesperadamente para o ser que estava a esculpir: "Aguenta aí só mais um pouquinho, eu já te tiro deste lugar"... ou seja, embora seja um pouco maluco de se dizer, a magia está dentro de todo o texto, nós só precisamos tirá-la de lá e colocar no lugar certo.
    Você me deu a DAVI, e eu estou esculpindo-o para você.. hahah!

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