sábado, 6 de novembro de 2010

Capítulo 4 - Fazer do trabalho a sua casa

... E da sua casa, seu trabalho. Essa é uma das consequências de morar sozinha. Um lema que adotei quando a Inês foi para a UFMG, há um ano. Eu tinha uma casa só pra mim e era extremamente estressante ficar dentro dela. Aí e comprei o Thor, com apenas dois meses. Foi bem legal, ele não largava do meu pé e todo tempo que eu ficava em casa eu alterava o ambiente. O quarto dos meus pais se tornou meu escritório, com todos os livros que nós possuíamos; o quarto da minha irmã continuou intacto, como ela mesma pediu; o meu, a cada seis meses, mais ou menos, eu mudava a cor das paredes e trocava os móveis de lugar.
Mas não foi sempre assim. Quando fiz 18 anos, um ano depois daquele acidente, herdei a casa de meus pais, casa a qual moro até hoje. Comigo veio minha irmã, com 7 anos, e minha tia avó Claudete, tia da minha mãe. Eu poderia herdar a casa de meus pais quando atingisse a maioridade, mas não levar minha irmã, ainda menor. Por isso essa minha tia veio morar com a gente. Mas só deu problema. Cuidei de Inês como se fosse minha própria filha, enquanto Claudete era responsável somente, em pagar as contas e ficar com Inês enquanto eu trabalhava.
A velha recebia várias pensões, uma delas por causa do marido que também já havia falecido, uma indenização por conta de um acidente de ônibus que ela havia participado, o que a fez perder os movimentos de parte do corpo, e eu sabia que ainda tinha muitos outros meios de conseguir dinheiro, pois desde que me lembro, ela jamais trabalhou.
De um modo geral, ela era engraçada, falava palavrões e contava piadas de humor negro, mas na maioria das vezes só causava problemas. Como no dia que acordou sem movimento algum, e não conseguia se levantar. Eu e Inês não nos atrevemos a levantá-la, embora ela não falasse seu peso, eu sabia que ela era muito grande.
Passamos o dia cuidando dela, dando comida, água, atenção e carinho, mas quando perguntei se não era melhor chamar o médico, ela disse que já estava sentindo os dedões do pé. Aí veio o calor insuportável, no meio da tarde era impossível suportar o suor dela, tanto que nem ela mesma aguentou e resolveu levantar-se para tomar banho. Depois disso, nunca mais acreditamos nela.

O tempo foi passando, Inês foi crescendo e voltando a me tratar como a irmã que ela perdeu, quando resolvi me tornar sua mãe, e passou a agir feito uma adolescente que vê problemas onde não tem, mas nunca perdeu o bom humor.

Desde que ela passou na UFMG, eu passo mais tempo na redação da tevê do que em casa, graças ao meu professor da USP, que facilitou um estágio dentro da TV Publish, no meu segundo ano de faculdade, em 2001. Estou lá desde então. Isso me fez querer o lugar mais agradável. Chego cedo todos os dias na redação, vou embora no meio da tarde, às vezes faço plantão, e até então nunca tive o azar de ter que cobrir algum fato muito crítico. Aos finais de semana também tem plantão, o período de trabalho se estende, o tanto de trabalho também, porém, o salário é maior. Nesse tempo, Thor fica sozinho em casa, mas ele gosta, não faz baderna, e todos os dias esta na porta, me esperando chegar, isso quando eu não tenho uma prévia da pauta e deixo a televisão ligada no canal da TV Publish para ele me assistir.

- Bom dia – disse eu aos poucos redatores e jornalistas que se encontravam na redação, pela manhã. Me aproximei da chefe de reportagem, a Lívia – o que tem pra mim hoje?
- Não quer sentar primeiro? Que tal deixar suas coisas na mesa, ligar o computador, ver os emails... – ela ria, vendo minha ansiedade.
- Ok. – respondi e fui até o meu computador.

Quando meu contrato foi renovado, passei a cobrir os eventos culturais pela cidade de São Paulo. Antenada em tudo que é novidade no ramo das artes em geral, algo muito gostoso de fazer. É uma das partes mais legais de ser jornalista. Vários convites para assistir a peças, musicais, shows, viagens, pessoas famosas, eventos em geral, a maioria eu acabo indo, mas quase tudo é aproveitado profissionalmente.

Ela havia deixado a pauta no final do email, que dizia o seguinte:
“A ‘The Finalap’ teve uma repercussão maravilhosa – e um tanto estranha – na televisão ontem. Se eu fosse você, guardaria o VT. Bom, de qualquer forma, você tem os contatos do Heitor, não tem? Teremos hoje, uma coletiva dele pela assessoria da Credicard Hall, sobre algo que eu ainda não sei do que se trata exatamente, então, procure saber e me repasse, caso o assunto render, você sairá novamente hoje, falando sobre a banda no horário nobre.”

- Lívia – chamei-a, depois de ler o email, indo até a mesa dela.
Ela riu, parecendo saber o que se passava em minha cabeça.
- Diga.
- Como aquela minirreportagem teve ‘grande repercussão’?
- Não sei. E também não sei por que você quis entrevistá-lo um pouco mais. Mas deu certo. Só sei que a assessoria deles disse que a matéria foi ótima e que eles tiveram, de ontem pra hoje, uma duplicação do acesso ao site da banda.
- Então virou uma matéria comercial? – disse, quase revoltada.
- Pode ser que sim, pode ser que não. Acontece que a audiência do programa na hora que você apareceu com a banda aumentou em 37%. Para ver se não foi coincidência, vamos tentar novamente. Pode ser?
- Claro, - eu disse – e isso aumenta em quanto o meu salário?
- Em nada – ela riu – como sempre.
- Imaginei. – levantei-me, rindo – Bom, vou ao trabalho.

Liguei para a assessoria do Credicard Hall, ver se o fato era verídico, ou se minha irmã tinha inventado a historia toda. Descobri que eles todos os fatos eram reais, exceto pela ligação deles para a tevê, e percebi que eles se sentiram intrigados pelas informações que eu possuía, e eu mais intrigada ainda de saber como Inês conseguiu se passar pela assessoria do Credicard Hall, saber os dados das compras de CDs e acessos ao site da banda, além dos truquezinhos. Ela era de fato, uma publicitária.
A informação que a coletiva me passou era de que Heitor faria uma turnê Mundial. Era fácil imaginar uma turnê mundial para um público que já não era exclusivamente brasileiro. Se eu fosse fã da banda, teria achado um insulto passar sete anos fora do país, sem visitar, sem tocar, sem nem ao menos lembrar que a origem deles é daqui. Mas como não cabe a mim julgar...

Fui fazer a coletiva com o Heitor pela assessoria, no horário que havíamos marcado. Ele me viu de longe, e eu fiquei na esperança de que ele me pudesse me chamar, sentar mais próxima dele, ou me concedesse mais perguntas, em vão. Ele sorriu pra mim, mas foi só.

As perguntas foram totalmente direcionadas a turnê que começaria dentro de algumas semanas, e em nenhum momento eu tive a oportunidade de perguntar algo a mais. Mesmo por que, em uma coletiva de imprensa, nada é privilégio, exceto pra mim, é claro.
Se eu havia conseguido uma palavrinha de Heitor aquele dia, por que não conseguiria outra vez? Sabe aquela sensação que faz você querer fazer algo fora da rotina, fora do roteiro? Então, normalmente, eu deixo a sensação tomar conta de mim, vou lá e faço.
Estranho era sentir medo e uma súbita atração por aquela situação. Ele era uma pessoa difícil de compreender, porém, eu queria descobrir mais sobre ele.

A coletiva rolava e eu me aproximava lentamente de onde ele estava falando, dessa vez,sem a banda. Não sei se ele me viu chegar perto, mas assim que as perguntas cessaram por um instante e eu falei, ele assustou, disfarçando-se:
- Heitor! – me aproximei, tentando uma brecha, no meio de tanto repórter.
- Oi, Carol – ele se aproximou de mim – o que te trás aqui?
- Você, não é? – eu ri, ele também – Na verdade, estive me perguntando se você não poderia ceder seu precioso tempo para falar comigo?

Ele olhou para os demais repórteres interessados em nossa conversa.
- Outra vez? – ele falou baixinho, intrigado.

Eu o observei algumas vezes, envergonhada. Ele era realmente muito bonito. Não aparentava ter 39 anos, e se soubesse minha idade, não me daria nenhuma bola. Os olhos claros não estavam acostumados ao sol de São Paulo e ele franzia a testa, tentando se esquivar da luz que surgia de trás de uma nuvem e agora começava a invadir as janelas do hall.

- Depende, vai me difamar? – ele disse, distanciando-se dos outros repórteres.
- E tem como? Se tiver fatos, eu utilizo – disse rindo, porém, percebi uma leve preocupação da parte dele. – Estou brincando. Na verdade, é algo que vai ser bom para nós dois.
- Não tenha tanta certeza disso, números são só números. Já estou sabendo sobre a audiência do jornal, e do breve aumento nas compras do CD, além dos acessos ao site da banda... E posso ter certeza que isso não quer dizer muita coisa. Mas eu aceito. O que vai ser dessa vez?
- O seu show. E sua música, mais precisamente a mais nova, que vai sair amanhã. – falei baixo também, não queria que todos soubessem de coisas que só eu sei.
- Como você sabe disso? – ele pigarreou.
- É a minha profissão, eu sou paga para fuçar a vida de quem está na minha pauta. – eu ri – Topa?

Ele me fitou, desconfiado. Eu sorri e ele começou a virar as costas pra mim, para voltar à coletiva.

- Conversamos depois. – ele foi cético.
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Leia aqui o próximo capítulo.


Todos os textos escritos sao de autoria de Gisela Santana. Por favor divulguem, mas com os necessarios meritos.

Um comentário:

  1. Gisa, você realmente tem uma marca peculiar. Eu leio vários textos de novos escritores que, como nós, desejam o aperfeiçoamento. Alguns textos são bons, gramaticalmente falando, outros são terríveis; mas, a verdade é que poucos conseguem prender a minha atenção. Seu livro é diferente, e não digo isso por saber de onde ele partiu, com Memória Marte foi idêntico. Às vezes, estou cansada e penso que não conseguirei ler o capítulo. Então, começo e... De repente, acabou?

    Parabéns mesmo! Vou rapidinho ao próximo capítulo.

    PS. Verifica a faculdade de Inês - UFMG ou
    UNESP: "Um lema que adotei quando a Inês foi para a UFMG, há um ano." ou "Desde que ela passou na UNESP".

    Beijos!

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